Por Cristiano Santana
Quem utiliza o serviço de transporte ferroviário do Rio de Janeiro, administrado pela Supervia, pode facilmente encontrar cartazes afixados no interior das composições com o seguinte texto:
Processo 2009.002.02539
Em razão de ação proposta pelo Ministério Público a 12ª Câmara Cível proibiu qualquer forma de manifestação religiosa nos trens. O descumprimento dessa determinação é passível de cessão coercitiva.
Evidentemente, tal decisão gerou intensas discussões. O leitor deste artigo provavelmente já tem uma opinião formada a respeito. Entretanto, é preciso ressaltar que muitas vezes adotamos opinião a respeito de determinado tema por mero impulso. Não nos preocupamos em buscar as informações necessárias ao correto julgamento da razão, principalmente aquelas pertencentes ao contexto de determinado acontecimento, fato ou notícia.
Por isso, achei importante trazer ao público alguns trechos das decisões de primeira e de segunda instância do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em resposta à ação impetrada pelo Ministério Público.
A Constituição assegura a liberdade religiosa, sendo certo que ela se compreende em algumas formas de expressão, dentre estas a liberdade de crença e a liberdade de culto. Conforme afirma o Il. Doutrinador José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo: ‘Na liberdade de crença está a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnoticismo. Quanto a liberdade de culto ficou preceituado no art. 5º, VI da CRFB, que é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantia,na forma da lei, proteção aos locais de culto e as suas liturgias’.
Voltando ao ensinamento do doutrinador supra descrito, este afirma naquela mesma obra que é evidente que não é a lei que vai definir os locais do culto e suas liturgias. Isso é parte da liberdade do exercício dos cultos, que não está sujeito a condicionamento. É claro que há locais, praças por exemplo, que não são propriamente locais de culto’. Ou seja, ocorre uma verdadeira contraposição entre as liberdades de crença de cada usuário da Supervia. Enquanto alguns professam a crença evangélica mediante a realização de culto dentro dos vagões, outros são obrigados a participar do culto em detrimento da sua própria crença. Deste modo, é imperioso resguardar a liberdade de crença que está sendo violada.
A proibição de realização de culto dentro dos vagões de forma alguma irá afrontar o preceito constitucional que assegura a liberdade de culto, posto que esta não é absoluta devendo ser observado o local de sua realização. Em regra, os cultos devem ser realizados nos templos posto que são edificações com características próprias da respectiva religião, ocasionalmente os cultos podem ser realizados em locais públicos, tais como praças e logradouros. É corrente que os usuários da Supervia não ingressam nos vagões em busca da participação em culto, mas sim com o objetivo de exercer seu direito de ir e vir, sendo certo que não lhes restam muitas opções diante do sistema viário operante. Enquanto que pessoas que se dirigem a uma praça em que será realizado um culto, exercem um juízo de conveniência e oportunidade para permanecer ou não no local. O periculum in mora está configura do na violação do direito supra descrito, conforme pode ser aferido no DVD juntado aos presentes autos.
Quanto ao mérito, há que destacar que, como bem foi destacado nas informações prestadas, que existe um conflito de interesses envolvendo o exercício de liberdade religiosa. Isto porque não se discute que seja constitucionalmente tutelado o livre exercício da fé pelo Impetrante, de forma que esta possa professá-la livremente. Contudo, esta mesma garantia individual também se concretiza de forma a que ninguém seja obrigado a assistir cultos, cerimônias ou quaisquer outras celebrações de outra religião que não a sua, ou até de nada presenciar, seja por não lhe ser oportuno e conveniente fazê-lo, seja por lhe ser garantido até não ter nenhuma religião.
Sabe-se ser comum que pessoas se reúnam em parques, praças e outros logradouros públicos e ali passam a desenvolver atividade religiosa, de forma que, quem quiser, poderá dela se aproximar e assistir ou até participar, estando livre para dali se retirar quando bem o quiser ou entender, ou até passar “ao largo”, sem que ali se reúna aos outros assistentes ou participantes, como, aliás, acontece nos templos e igrejas, cujas portas, normalmente, são mantidas abertas para que quem quiser, entre, assista e até participe.
Contudo, isto já não se afigura desta forma num ambiente de transporte coletivo, no qual as pessoas tiveram de previamente arcar com o pagamento da tarifa e que, caso alguém que não esteja engajado numa prática religiosa, deverá dali sair, às vezes sem conseguir alocação em outro vagão, ou até se deparando neste outro com outra celebração religiosa que não lhe interesse. Enquanto usuário de transporte coletivo, ele pagou a tarifa exigida e tem direito à tranquilidade durante a sua locomoção. Ademais, não se trata de local de onde possa o “incomodado se mudar”, posto que as paradas nas estações acontecem entremeadas com alguns longos trechos de movimento ininterrupto.
Desta forma, é muito diversa a situação dos usuários de um serviço de transporte coletivo como este, daqueles que, passando pela rua, resolvem entrar num templo ou igreja, ou parar para assistir em logradouro público uma manifestação daquela natureza.
Remonta ao Iluminismo um brocardo jurídico que bem se adequa à hipótese vertente: “o direito de um cessa quando se inicia o direito de outrem”. Ninguém pode ser compelido a assistir ou a indiretamente participar de culto, cerimônia ou manifestação religiosa, seja porque naquele momento não possa dali sair ou mudar de vagão, seja porque soa como um verdadeiro absurdo que alguém tenha de abandonar aquele trem e ingressar noutro, simplesmente para “fugir” daquela manifestação que o incomodava e em face da qual não pretendia continuar a sofrer tal constrangimento.
Creio que agora o leitor terá mais subsídios para emitir uma opinião mais abalizada sobre a decisão do TJ-RJ de proibir pregações religiosas no interior dos trens.
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