Por Cristiano Santana
Introdução:
Sabemos que a superação do domínio do "eu" é a principal consequência da ação transformadora do Evangelho, tanto que tradicionalmente se diz que, na conversão, Cristo entra no interior do homem, destrona o "eu" e senta no seu lugar. O termo "eu", neste caso, é entendido como a natureza humana corrompida pelo pecado, natureza essa que age exclusivamente em prol de seus interesses.
Várias passagens bíblicas falam sobre a necessidade de libertação desse tirano interior. Jesus manda cada um negar-se a si mesmo (Mt. 16.24). Em outra ocasião diz que se alguém não aborrece a própria vida não pode ser seu discípulo (Lc 14.26). Paulo, identificando esse "eu" com a carne, nos diz que os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne (Gl 5:24); e mais tarde se alegra ao dizer que "não sou eu quem vive, mais Cristo vive em mim" (Gl. 2:20).
Ocorre que com o passar do tempo essa doutrina da negação do "eu" degenerou-se em uma forma de aversão que parece se voltar contra a própria existência, como se aqueles que foram criados à imagem e semelhança de Deus fossem as criaturas mais abjetas do universo. Elaborou-se uma imagem extremamente pessimista da natureza humana a ponto de Pascal dizer que o "eu" é completamente execrável.
Embora o Evangelho nos advirta contra o poderio do "eu" corrompido, isso não impede que o indivíduo tenha amor por si mesmo. É importante ressaltar que o amor de si não tem relação alguma com o egoísmo, sendo este último, na verdade, a forma pervertida do primeiro.
A legitimidade do amor de si
Nicolas Malenbranche nos diz que o amor de si compreende o desejo de ser feliz, produzido constantemente em nós por Deus e que tem seu fim em Deus mesmo. Cícero acrescenta que desde o seu nascimento, um ser animado quer para si mesmo o bem e se esforça para conservar a constituição que o faz assim como ele é, ama o que pode servir para a sua manutenção e, ao contrário, tem repugnância de sua própria destruição e se afasta das coisas que parecem ameaçar destruí-lo (Cícero, De finibus, III,5). Amar-se é querer ser si-mesmo ainda mais do que o que se é, é realizar esse movimento para poder ser si-mesmo melhor do que o que era.
Ora, é necessário que eu tenha um mínimo de amor por mim mesmo. Se não for assim, pra que viver então? Os que deixam de ter afeição por si mesmos estão na estatísticas de suicídios. Observem também o mandamento de Jesus: "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo". Claramente se subentende que o amor que devo ao meu próximo deve ter como padrão o amor que tenho por mim mesmo! Logo Jesus não proíbe o amor de si.
Assim, é legítimo que eu queira ter uma boa saúde, uma família bem constituída, um vida profissional bem sucedida, cursar uma faculdade, enfim, buscar tudo aquilo que contribua para minha felicidade e conservação.
Assim, é legítimo que eu queira ter uma boa saúde, uma família bem constituída, um vida profissional bem sucedida, cursar uma faculdade, enfim, buscar tudo aquilo que contribua para minha felicidade e conservação.
A degeneração do amor de si: o egoísmo
A natureza do egoísmo é amar somente a si e considerar somente a si. O egoísmo é uma transformação que faz do amor de si um amor-próprio apresentando o procedimento que reduz tudo a si, que torna os homens idólatras de si mesmos. O espírito de sacrifício desaparece, só tem importância o que pode nos valorizar socialmente; louvamos alguém para sermos louvador por ele. Malenbranche diz que o egoísmo é um amor de complacência que é desregrado, pois é complacência a si mesmo, acreditando que o homem é causa de sua felicidade e perfeição.
Com certeza Deus não quer adotemos esse estilo de amor próprio, pois nele o pecado está profundamente enraizado. Fujamos, portanto, desse "eu" corrompido.
O amor ao outro como irradiação do amor de si
A verdade mais profunda do amor de si é que eu só me descubro no momento em que acolho outrem. A vitória sobre o egoísmo e a rejeição do fechamento dentro de si, far-me-ão descobrir o que sou e o valor que posso me atribuir. O amor de si só terá o seu florescimento na generosidade.
Quem nunca experimentou uma satisfação de si, um repouso da consciência depois de praticar uma boa ação? Interessante as palavras de Jean-Jacques Rosseau: "O sofrimento que podemos sentir diante de um ser infeliz, a piedade, será o prolongamento desse amor de si; o amor dos homens deriva do amor de si". Kierkegaard também diz que "permaneceremos no desespero, se quisermos ser nós mesmos temporalmente, mas o ultrapassaremos instaurando uma relação infinita com o outro". Louis Lavelle lembra que querer limitar-se a si, reduzir tudo a si, é perder-se no amor-próprio, pois a vida interior é feita para irradiar.
Conclusão:
Vemos assim que o amor de si só é autêntico quando encontra expressão no amor ao próximo. Se não me dedico ao outro, de forma alguma amo a mim mesmo, pois um dos traços da bondade é enxergar a mim mesmo no outro; e quando faço o bem ao próximo, eu mesmo colho os benefícios espirituais e materiais. Qualquer coisa diferente disso é egoísmo, é idolatria do "eu".
Finalizando, fica aqui o célebre ditado de Montaigne: "Quem não vive de modo nenhum para o outro, não vive muito para si".
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