
Por Cristiano Santana
Talvez a palavra "felicidade" seja a promessa mais oferecida pelas igrejas, em sua tarefa de atrair as pessoas. O "slogan" mais utilizado costuma ser este: "Pare de sofrer! Venha ser feliz". Tal método publicitário tem fulcro no fato constatado de que os seres humanos perseguem, quase que instintivamente, a realização da felicidade, o maior de todos os objetivos da existência.
Imaginemos que o aludido "slogan" fosse alterado para: "Pare de sofrer!Venha ser um bem-aventurado!". Será que o mesmo sentido seria mantido? "Bem-aventurado" e "feliz", significaram, nesse caso, a mesma coisa? Semânticamente, teriam o mesmo valor? A resposta é NÃO?
Analisando, adiante as diferenças entre essas duas palavras, tenho certeza que no final o leitor perceberá que as igrejas se esvaziariam bastante se, no lugar da felicidade, fosse oferecida a bem-aventurança a esse povo escravizado pelo vício consumista, que busca a plena satisfação mundana, através da aquisição de bens materiais, em detrimento dos espirituais.
Vejamos, portanto, as diferenças entre felicidade e bem-aventurança
DIFERENÇA ETIMOLÓGICA
Felicidade: Deriva do grego "eudaimonia", palavra que não ocorre no Novo Testamento. Significa, em geral, estado de satisfação completa, devido à situação no mundo. É um conceito humano e mundano. Nasceu na Grécia, onde Tales julgava que "feliz é quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada". Posteriormente foi tratada como o sistemas dos prazeres particulares, em que se somam também os passados e os futuros, primeiro pelos epicuristas, depois, pelo movimento humanista.
Bem-aventurança: Deriva do grego "makarios" e outras palavras correlatas ("makarismos", "makarizo"). Significa estado de satisfação completa, perfeitamente independente das vicissitudes, das instabilidades do mundo; é indiferente à toda realidade externa e está vinculada a uma vida predominantemente contemplativa. Esta palavra começou a adquirir importância quando Sócrates, Aristóteles e Platão começaram definir a felicidade como sendo a posse da virtude, da temperança, da sabedoria, acepções que posteriormente foram adotadas pela tradição cristã.
DIFERENÇA TEOLÓGICA
Como explicado acima, a felicidade (eudaimonia) é um termo inexistente no Novo Testamento que se utilizada, predominantemente da idéia de bem-aventurança (makarios, marismos, makarizo) para designar uma vida de completa satisfação. No judaísmo helênico a influência helenística se mostrava claramente no emprego da palavra "makarios" (bem-aventurado), especialmente em Filo. Segundo ele, só a divindade atinge a bem-aventurança. O Senhor Jesus, seguindo a tradição apocalítica, usou essa palavra no Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados, etc." (Mateus 5)
Nestes pronunciamentos de Jesus, o presente e o futuro se relacionam entre si. Isto fica claro na versão que Lc dá deles em 6:20 e segs., onde a palavra "agora" se coloca em v.21, sublinhando este relacionamento. "Bem-aventurados vós os que agora tendes fome, porque sereis fartos". Agora se eclipsam todos os benefícios que eram louvados no helenismo e no Antigo Testamento. A estimativa predominante do reino de Deus leva consigo uma inversão de todas as avaliações costumeiras. De fato, parece paradoxal chamar de bem-aventurada uma pessoa que vive uma situação completamente adversa, como por exemplo, um cristão preso, esperando o momento de ser executado na fogueira.
DIFERENÇA TEMPORAL
Por não depender de condições externas, vale dizer, circunstanciais, a bem-aventurança é um estado capaz de se prolongar indefinidamente no tempo, ao contrário da felicidade, que depende de variáveis concretas, como saúde, beleza, dinheiro, amigos, bens, etc. O problema é que a imprevisilibidade é uma constante que domina o mundo, representando sempre uma ameaça a uma situação confortável no presente. Um acidente, uma doença, uma falência, a perda do emprego, ou até mesmo a morte, podem interromper, drásticamente, uma temporada de felicidade.
O caráter intemporal da bem-aventurança pode ser consubstanciado pela promessas do Senhor Jesus. A fruição das bem-aventuranças começa agora, mas o gozo total e máximo dessa dádiva ocorrerá na eternidade, quando seremos consolados, fartos, veremos a Deus, alcançaremos misericórdia, etc.
Enfim, a idéia de duração não é essencial à felicidade que sente a influência de qualquer diferença, mas é essencial à bem-aventurança.
DIFERENÇA QUANTO À ALCANÇABILIDADE
Quanto à felicidade, é importante apresentamos a abordagem de Kant para quem a "felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações, tanto em extensão, quer dizer, em multiplicidade, como em intensidade, quer dizer, em grau, e em protensão, quer dizer, em duração" (Crítica da Razão Pura). O filósofo alemão teve o mérito de enunciar com rigor a noção de felicidade, e, em segundo lugar, de mostrar que essa noção é empiricamente impossível, irrealizável. De fato, não é possível que sejam satisfeitas todas as tendências, inclinações e volições do homem, porque de um lado a natureza não se preocupa em vir ao encontro do homem, com vistas a essa satisfação total, e de outro porque as próprias necessidades e inclinações nunca se aquietam no repouso da satisfação (Critica do Juízo)
A bem-aventurança (beatitude), pelo contrário, é plenamente realizável pois independe das lides mundanas e se sustém na disposição interna da alma. Por exemplo, para Aristóteles a felicidade é o estado ideal do sábio. Tomás de Aquino diz que a bem-aventurança é a última perfeição do homem, isto é, a atividade da faculdade da alma mais elevada, o intelecto na contemplação da realidade superior, isto é, de Deus e dos anjos. Acrescenta dizendo que o homem só obterá a bem-aventurança perfeita na vida futura, que será inteiramente contemplativa. Pode-se dizer do homem que nasceu de novo, que recebeu o selo do Espírito Santo, que vive em comunhão com Deus, que ele atingiu a bem-aventurança, não perfeita, mas parcial, que a cada dia vai aumentando em intensidade.
CONCLUSÃO:
Na Idade Moderna, o conceito de bem-aventurança e o de felicidade foram-se distinguindo cada vez mais, referindo-se o primeiro à esfera religiosa e contemplativa e o segundo à esfera prática. Nessa diferença, percebe-se o valor mais elevado da bem-aventurança, quando comparada à felicidade. Não se pode exagerar e reduzir a bem-aventurança a um estado sadomasoquista, patológico, no qual a pessoa exibe total indiferença em relação às circunstâncias e aos acontecimentos exteriores. É claro que o ser humano precisa de meios de subsistência, mas a busca incessante da felicidade, neste mundo que jaz no maligno, isso sim é um comportamento doentio. Há um "buraco-negro", no interior das pessoas sem Deus, que faz com que elas nunca se dêem por satisfeitas. Cada conquista pede uma maior, cada prazer pede outro mais intenso. E é nessa busca de completa felicidade que o ser acaba experimentando a total infelicidade, a triste condição de nunca estar satisfeito.
Depois dessa reflexão, conclui-se que é melhor buscar a bem-aventurança do que a felicidade, sendo certo que só o bem-aventurado sente completa satisfação, que é alimentada por fontes espirituais e eternas.
Bibliografia:
1- Dicionário Internacional Teológico do Novo Testamento. Lothar Coenen, Colin Brown. Edições Vida Nova.
2- Dicionário de Filosofia. Nicola Abbagnano. Editora Martins Fontes
3- Vocabulário Técnico e Crítico de Filosofia. André Lalande. Editora Martins Fontes.
4- Crítica da Razão Pura - Immanuel Kant
5- Crítica do Juízo - Immanuel Kant